Segue abaixo uma tradução da Sylvia Angélico (Cachorro Verde) de um ótimo artigo escrito pela comportamentalista Ph.D Patricia McConnell, publicado na revista norte-americana The Bark.
Bem criados
Combinando forças para manter cães fora de abrigos
por Patricia B. McConnell, PhD
Há algum tempo, um casal – vou chamá-los de John e Mary – me procurou porque o cão deles havia mordido uma visita. “Ele era um filhote normal, mas agora que está mais velho, late e rosna para as visitas como se quisesse comê-las. A mordida foi a última gota – ele machucou um grande amigo nosso que veio pegar um livro emprestado e ainda estamos nos sentindo culpados pelo ocorrido.”
Como informações relativas ao histórico sempre ajudam muito comecei perguntando a eles onde haviam adquirido o cão. “De uma grande criadora”, John respondeu. “Ela tem inúmeros campeões.” Quando perguntei se eles conheciam bem o comportamento dos pais do filhote, Mary respondeu, “Bem, a mãe era adorável, mas não podemos falar nada sobre o pai porque não conseguimos chegar perto dele. Ele estava latindo e mostrando os dentes, e não quisemos chegar perto dele para tentar fazer carinho. A criadora disse que ele estava apenas querendo proteger os filhotes.”
Ah, mas tal pai, tal filho, não? O cachorro deste casal estava agindo exatamente igual ao seu pai – o cão que a criadora continuava a usar como padreador porque, tempos atrás, ele vencera títulos em exposições de beleza e conformação. E essa era uma criadora amplamente respeitada, tida por muitos como “responsável”.
Mas não, ela não era responsável. Acasalar um cão com predisposição a agressividade direcionada a estranhos não é praticar criação responsável. Acasalar um cão prognata (que apresenta a mandíbula à frente da maxila), uma característica com potencial para virar um futuro problema de saúde, ou com instabilidades comportamentais mediadas geneticamente, não é praticar criação responsável. E, no entanto, esse tipo de acasalamento é frequentemente praticado por criadores de cães para exposições, trabalho ou para companhia, bem como por aqueles que permitem que filhotes venham ao mundo porque ninguém estava prestando atenção.
Acasalamentos irresponsáveis não são novidade: todos sabemos que isso acontece de monte em nosso país (Estados Unidos). Criadores que não respeitam seus próprios cães e seus compradores são bem conhecidos no meio cinófilo, e frequentemente são difamados em público. Mas o inverso – criadores realmente responsáveis – é constantemente ignorado, e acredito que nossos animais de estimação sofram com isso.
E aqueles criadores que acasalam seus cães cuidadosamente, selecionam os lares mais apropriados para os filhotes, e permanecem responsáveis por toda a vida de cada um dos cães? Ah, mas, alguém poderia dizer, como é que alguém pode ser considerado responsável quando traz mais cães a esse mundo onde já existem tantos cães em abrigos?
Antes que eu prossiga, deixe-me afirmar sem reservas que o atual enfoque sobre adoção de cães de abrigos é algo muito, mas muito bom. Nós precisamos fazer tudo o que pudermos para tirar os cães dos abrigos e levá-los para bons lares, e sou uma admiradora convicta desses esforços. No passado, um grande grupo de cães carentes se instalou na minha fazenda. Quando eu me “aposentar” o bastante para trabalhar em apenas um emprego, vou acolher outra matilha de cães. Contudo – e aguente um pouquinho que eu chego lá – adoções e programas de castração atuam em apenas dois terços da situação. Sim, iniciativas de incentivo à adoção e cirurgias de castração têm ajudado tremendamente a reduzir o número de cães que vão parar em abrigos. Mas, ainda assim, aproximadamente dois milhões de cães morrem em abrigos a cada ano. A solução parece óbvia, né? Devemos desencorajar toda e qualquer criação de cães, certo?
Isso parece razoável, até que você examine a pesquisa realizada em 1995 por Gary Patronek e Andrew Rowan, que investigaram dados estatísticos da propriedade de cães e o número de cachorros que acabavam em abrigos. Eles levantaram que cerca de 7.3 milhões de cães são adquiridos anualmente como animais de companhia por lares norte-americanos, sendo que, deste total, cerca de 6.2 milhões de filhotes nascem em canis “oficiais” ou de fundo de quintal.
Mais tarde, Patronek e Rowan estimaram que cerca de 4.4 milhões de cães vão parar em abrigos anualmente: 400.000 vêm de criações amadoras que não encontram lares para suas ninhadas, 2.2 milhões são cães sem dono que vagam pelas ruas (600.00 destes foram reclamados pelos donos posteriormente), e 1.8 milhão de cães são devolvidos pelos donos. Desse total, aproximadamente 1.8 a 2.1 milhões de cães não encontram novos lares e morrem em abrigos a cada ano. Mas, se 7.3 milhões são adotados todos os anos, e apenas 6.2 milhões são produzidos em canis, de onde vem o número extra de cães que abarrota os abrigos?
Nós sabemos a resposta. Grande parte dos cães acaba em abrigos devido ao que os donos chamam de “problemas comportamentais”. Muitos desses problemas podem ser facilmente resolvidos, mas as primeiras famílias desses cães não souberam ou não estavam dispostas a lidar com eles. Quem trabalha em abrigos sabe que muitos desses “problemas comportamentais” não raro são situações como “ele não vem quando chamamos” (embora nunca tenham treinado o cão a fazê-lo) ou “ele roeu sapatos” (como fez um filhote de sete meses, deixado sozinho por 8 horas). Outro motivo comum para devolução tem a ver com dinheiro. Em alguns casos, as pessoas não faziam idéia de quanto custaria para criar um cão da infância à maturidade, ou, não por sua culpa, perderam a condição financeira para cuidar de um cão.
É por isso que, na minha opinião, os esforços preventivos requerem um terceiro apoio a fim de evitarmos que tantos cães continuem a morrer em abrigos. É aí que entram os criadores responsáveis. Criadores responsáveis não apenas reduzem as chances de um cão precisar mudar de lar, mas mantêm cães fora de abrigos ao acompanharem esses cães por toda a vida destes e estando dispostos a oferecer a eles um lar caso seja necessário.
Não é fácil ser um criador responsável; requer um grande dispêndio de tempo, energia e conhecimento. Bons criadores selecionam cuidadosamente os pares que serão acasalados com base na saúde genética, física e comportamental; cuidam da fêmea reprodutora e da ninhada como eles merecem; proporcionam um ambiente adequado para os filhotes em desenvolvimento; vendem filhotes apenas para os melhores lares; são favoráveis a técnicas de adestramento humanitárias e eficientes; e estão dispostos a aceitar a devolução de todo cão vendido, não importando a idade dele.
Esse é um esforço e tanto, vá por mim – crio Border Collies há muitos anos. Minha cadela Lassie teve duas ninhadas, e ainda me lembro de chorar por dias quando alguns de seus filhotes morreram de uma doença desconhecida. Mandei castrá-la (mais lágrimas), mesmo sem ter certeza de que o problema tinha ou não alguma base genética.
Como todo criador responsável deve agir, aceitei devolução de cães de todas as idades (até um de nove anos, certa vez) e trabalhei com eles por muitos meses antes de encontrar o lar certo para cada um. Acompanhei cada filhote por anos e, sempre que foi necessário, auxiliei os donos a resolver qualquer problema comportamental que surgisse. Mesmo assim, em alguns círculos, quando comento que crio cachorros, sou tratada como pária. Esse tratamento não é incomum – pergunte a qualquer bom criador. Criadores verdadeiramente idôneos raramente são reconhecidos por seus esforços. O mais comum é serem agrupados aos criadores irresponsáveis e castigados. Tendo em vista que os bons criadores estão ajudando a manter os cães fora de abrigos e longe das ruas, trata-se de uma triste ironia que não ajuda ninguém.
Todo mundo sabe que um tripé é firme porque tem três pernas. É disso que precisamos: de uma abordagem sustentada por três apoios para evitar que cães morram em abrigos. Encoraje todo mundo, menos os criadores responsáveis (é claro), a castrar seus cães, incentive mais adoções de cães carentes, e, igualmente importante, apóie criações responsáveis educando as pessoas sobre o que isso representa. E não deixe de ocasionalmente reconhecer o valor de quem faz isso direito. Afinal de contas, o reforço positivo é eficiente para todas as espécies, não?
Fonte: “Well Bred – A three-pronged approach to keeping dogs out of shelters” – artigo escrito por Patricia McConnell e publicado na revista The Bark, 60a. edição, verão de 2010, págs 40, 42 e 43.
Patricia B. McConnell, Ph.D, CAAB (Comportamentalista Animal Certificada), é uma comportamentalista e etologista animal e professora associada adjunta de Zoologia na Universidade de Wisconsin, Madison, bem como autora de inúmeros livros sobre comportamento e treinamento. Websites: www.patriciamcconnell.com e www.theotherendoftheleash.com
Referências Bibliográficas
Patronek, G.J., Glickman, L.T., Moyer, M.R. (1995). Population dynamics and the risk of euthanasia for dogs in an animal shelter. Anthrozoos (8)1: 31-43.
Patronek, G.J., Rowan, A.N. (1995). Determining dog and cat numbers and population dynamics. Anthrozoos (8)4: 199-205.
Bartlett, P., Bartlett, A., Walshaw. S., and Halstead, S. (2005). Rates of euthanasia and adoption for dogs and cats in Michigan animal shelters. Journal of Applied Animal Welfare Science 8(2): 97-104.
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